Um mergulho no inexplicável da voz de Jeff Buckley
It’s Never Over, Jeff Buckley, de Amy Berg: o homem e o músico através do olhar
das
mulheres da sua vida (como a mãe, na foto), dos amigos, de diários, mensagens telefónicas, vídeos caseiros ou muito públicos.
TRANSCRIPTION
(Portuguese)
It’s Never Over, Jeff Buckley, de Amy Berg, devolve-nos o autor de Grace e a sua voz milagrosa. É um dos destaques do Doclisboa 2025. Em exibição também no Trindade, no Porto.
É um trabalho longo, de décadas. Vinte anos demorou Amy Berg a tornar realidade It’s Never Over, Jeff Buckley, o documentário em que conta a curta história de vida do autor de Grace, em que procura lê-lo e explicá-lo através do olhar das mulheres da sua vida (principalmente), dos relatos de amigos próximos, de excertos de diários, mensagens telefónicas, vídeos caseiros e vídeos muito públicos. Valeu a pena a espera.
Apesar da sua estrutura convencional — depoimentos, imagens de arquivo, animações para traduzir ambientes emocionais —, o documentário que chega agora ao Doclisboa (sexta-feira, 19h, Cinema São Jorge; dia 26, Culturgest, 15h), um dos destaques da secção Heartbeat, onde encontramos, no que à música diz respeito, Becoming Madonna(Michael Ogden), Duran Duran: Unstaged (David Lynch) ou One to One: John & Yoko (Kevin Macdonald, Sam Rice-Edwards), devolve-nos Jeff Buckley da forma mais próxima, íntima e, arriscamos, justa possível: o músico abençoado com umas milagrosas cordas vocais, o filho abandonado de uma lenda maldita dos anos 1960 e 1970, o cometa fugaz cuja passagem não deixou ninguém indiferente. No centro, sempre, aquela voz, a de alguém que “queria secretamente ser Nina Simone”, que tinha no paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, mestre do canto qawwali, o seu Elvis, e que descrevia desta forma aquilo que corria na sua música: “Amor, raiva, depressão, alegria... e [Led] Zeppelin” (paralelamente à exibição no Doclisboa, passa também no Cinema Trindade, no Porto, sábado, às 19h, e dia 22, às 21h30 — todas as sessões, quer a norte, quer a sul, estão já esgotadas).
Jeff Buckley encontrara-se por fim. Início dos anos 1990 e ele em Nova Iorque, no coração da movida artística da cidade, entre o teatro experimental a que fora conduzido pela namorada, a música e artista Rebecca Moore, e as canções, claro, sempre as canções que trabalhava em casa e que mostrava no palco de um clube minúsculo, o Sin-é. Imerso em toda aquela agitação, junto de uma comunidade que lhe permitia desabrochar, longe dos bullies broncos da escola, na Califórnia, que o insultavam – “faggot!” – e que lhe vandalizam a caixa de guitarra – “geek” –, Jeff Buckley sorria. Não sorria sempre.
“Desaparecia por vezes para um lugar inacessível”, conta um amigo. Desaparecia, submergia num mundo interior dorido, conturbado, sem franquear entrada a ninguém. Desse espaço íntimo se fez (também) a sua música, dele se fez certamente a capacidade de expressão sobrenatural ao microfone, técnica perfeita por traduzir tão imaculadamente as emoções que dele brotavam.
Do que o revolvia nesse mundo interior falou-se muito depois daquele trágico, estúpido dia em que achou boa ideia mergulhar vestido e de botas calçadas no rio Wolf, em Memphis. Foi no dia 29 de Maio de 1997. Jeff Buckley tinha 30 anos. Para aquele mesmo dia estava marcado o início das sessões de gravação do segundo álbum — a sua banda estaria a aterrar em Memphis quando Buckley pediu ao seu roadie para parar o carro e saiu em direcção à água. Depois da morte, a conversa habitual — mais um músico a sucumbir aos demónios da pressão da fama e aos inevitáveis excessos, tal como, 19 anos antes, em 1975, sucumbira o seu pai, Tim Buckley. Não era verdade — Jeff tinha não mais que uma cerveja na corrente sanguínea quando do afogamento. Essa não é a história de It’s Never Over.
Documentário nascido da persistência de Amy Berg, realizadora de Deliver Us From Evil (2006) ou de Janis: Little Girl Blue (2015), It’s Never Over nasce quando Mary Guibert, mãe de Jeff, sentindo a idade a avançar (tem hoje 77 anos), abre por fim os arquivos do filho e cede o controlo da narrativa à realizadora. Brad Pitt, que há muito cortejava Guibert para um biopic em que ele mesmo interpretaria Jeff Buckley, algo que a mãe via como inimaginável — “então e depois abres a boca e ouve-se a voz dele a cantar?” —, contribuiu com a digitalização e tratamento dos arquivos.
Berg avançou então, numa abordagem muito de acordo com aquilo que a cativou irremediavelmente na música de Jeff Buckley. “Nos anos 1990, costumava ver todas as bandas que podia. Envolvi-me mesmo muito com o grunge e o punk”, contava em Agosto ao New York Times. “E então ouvi Grace e foi como que ‘oh, meu Deus, está tudo bem com ser uma rapariga novamente’. Tudo o resto era tão voltado para os gajos.” Joan Wasser, companheira de Buckley que hoje conhecemos como Joan as Police Woman, dirá: “A sensibilidade dele não tinha sido esmagada como a de outros homens. A sensibilidade dele estava intacta”. Wasser, Rebecca Moore e, claro, a mãe, a mulher que o criou tanto quanto ele a criou a ela, como é dito ao longo do filme, são no documentário de 1h46m as nossas guias principais.
Tudo começara com uma criança a ouvir a versão de Diana Ross para Ain’t no mountain high enough. A música revelava-se-lhe. Na verdade, tudo começara antes. Jeff herdara do pai, que o abandonara e à mãe, tinha ele seis meses e ela 17 anos, os traços físicos e a voz virtuosa. Uma semana foi todo o tempo que Jeff passou com Tim Buckley, numas férias em 1975. Quando o enviou de volta para a mãe, antes de partir em digressão, o autor do genial Starsailor, ponte entre folk e jazz vanguardista, deixou-lhe uma caixa de fósforos com um número de telefone e uma mensagem — “Love you, Tim”. Morreria poucas semanas depois, aos 28 anos.
O pai ausente seria uma sombra a acompanhá-lo. É num concerto de homenagem a Tim Buckley, em 1991, na St. Ann’s Church, que Jeff se revela perante a nata artística de Nova Iorque — “saí de lá com 60 cartões-de-visita nos bolsos". É ao pai que será conduzido quando Grace é editado, em 1994, e se sucedem as entrevistas com a imprensa: “O que herdou do seu pai?”, pergunta a jornalista. “Pessoas que se lembram do meu pai. Próxima pergunta.” É ao pai, morto jovem como jovem morreu ele, que se regressará depois, seguindo a pista óbvia da tragédia em idade precoce — enquanto isso, o culto era alimentado com uma longa sucessão de edições póstumas, entre registos ao vivo, álbuns construídos sobre maquetas ou compilações das maquetas elas mesmas.
Jeff Buckley foi um dos rostos dos anos 1990, figura de culto fervoroso admirada pela voz poética, pela sensibilidade lírica, pela forma como a música de Grace combinava intensidade rock e intimidade de cantautor, num todo engrandecido pelas orquestrações e pela escolha criteriosa das versões: a de Hallelujah, de Cohen, tragicamente gasta por demasiado uso no inferno dos concursos de talentos, a de Lilac wine, cantada anteriormente por Eartha Kitt ou Nina Simone, o tradicional sacro Corpus Christi carol, voz arrepiante erguida aos céus. Mas se Jeff Buckley pertencia aos anos 1990 era neles, ao mesmo tempo, um corpo estranho.
Depois da edição de Grace, correu o mundo numa digressão que se prolongou por quase três anos. Desconfortável com a celebridade — quando a revista People o incluiu numa lista das 50 estrelas mais bem-parecidas do momento, comprou todas as cópias nas bancas do seu bairro para que a vizinhança não o visse naquela triste figura —, temendo perder a liberdade artística perante a pressão da editora, que queria um segundo álbum o mais rápido possível, muda-se para um pequeno casebre em Memphis. Procura alguma paz, procura concentrar-se novamente na música e na composição. Acreditava que, “sem a vida de todos os dias, não existe arte”. Era a vida de todos os dias que procurava. Não a encontrou.
Sofre de pesadelos e visões infernais, autodiagnostica-se como tendo perturbação bipolar. Semanas antes da sua morte, liga a vários amigos, amigas, companheiras com quem não falava há muito. Quer explicar-se, recordar velhos tempos, pedir desculpa. Podia ser uma despedida, podia ser simplesmente Jeff Buckley a querer recomeçar tudo outra vez, depois do turbilhão físico e emocional dos anos anteriores.
Animara-se com a aproximação do início das gravações do novo álbum, My Sweetheart the Drunk. Ouvia Whole lotta love, dos Led Zeppelin, enquanto conduzia com o roadie. A sua banda estava quase a chegar. Viu o rio e a luz dourada a descer sobre as águas. Parou o carro na margem. A vida parecia correr bem novamente.