Jeff Buckley (1966-1997) retratado em 1993 por Merri Cyr, uma das fotografias
da sessão de “Grace”, o único álbum de originais editado em vida.
TRANSCRIPTION
(Portuguese)
Já podemos ver no cinema – em Lisboa e no Porto – “It’s Never Over, Jeff Buckley”, o documentário de Amy Berg sobre o intenso mundo emocional habitado pelo músico norte-americano, precocemente falecido em 1997. Há uma voz que nunca se apaga.
Quando, em 1997, Jeff Buckley morreu por afogamento no Wolf River, um afluente do Mississípi, a sua discografia consistia de um e só um álbum de estúdio (“Grace”, 1994). Atualmente, sem que tenha sido registado algum fenómeno de ressurreição miraculosa, contam-se 10 álbuns de compilações, 11 ao vivo, 2 caixas, 2 EP e 5 vídeos/DVD, nos quais faltará ainda incluir outros cofres do tesouro que recolherão inéditos como ‘Dido’s Lament’ (uma ária de “Dido e Æneas”, de Henry Purcell, interpretada em 1995 no festival Meltdown, em Londres, sob a direção de Elvis Costello) ou ‘All Flowers in Time Bend Towards the Sun’ (a colaboração de Buckley com Elizabeth Fraser, dos Cocteau Twins, que esta impediria de ser publicada, considerando-a “inacabada”, ainda que acrescentando “talvez não mantenha esta ideia para sempre”). Responsável por tamanho dilúvio de material post mortem? Mary Guibert, a mãe adolescente do jovem génio Buckley, filho de outro Buckley genial, Tim, tão mais excecional explorador dos infinitos sonoros quanto figura paternal distante e ausente. O qual, em “It’s Never Over, Jeff Buckley” (2025), o documentário de Amy Berg agora disponível, apenas de passagem é referido por Tim em relação à parte agridoce: “O que herdei do meu pai? As pessoas que se lembram do meu pai... Pergunta seguinte?”
Um dos eixos principais do documentário é justamente o relacionamento de Jeff com a mãe, que desempenha um papel central de narradora ao longo do filme. As entrevistas de Guibert oferecem um olhar profundamente pessoal sobre os anos de formação de Buckley, revelando traços do seu carácter e do intenso mundo emocional que ele habitava e que o habitava. Já em 2000, quando, a propósito da publicação de “Mistery White Boy” (coleção de atuações ao vivo), conversámos em Paris, era absolutamente notório que Guibert tinha assumido por inteiro o papel de ferocíssima guardiã do legado artístico do filho. Senão mesmo de guia espiritual que, superiormente, lhe orientara o percurso: “Quando ele tinha 3 ou 4 anos, dediquei-me ao estudo da metafísica. Daí que, sempre que ele me fazia o género de perguntas que as crianças fazem, lhe tenha procurado transmitir o conceito de que cada um de nós é uma partícula de Deus, da mesma forma que uma gota de água faz parte do oceano e que o nosso objetivo consiste em gozar a vida na sua plenitude. Quando descobriu o poeta sufi, Rûmi, foi como se tivesse encontrado uma luz naqueles poemas.” E, estabelecendo a relação entre todos esses fios de sentido, “foi isso que o conduziu até [ao músico paquistanês] Nusrat Fateh Ali Khan e ao modo de vida sufi que é completamente o oposto de uma atitude ascética e monástica de rejeição do mundo material: viver a vida, casar-se, ter filhos, trabalhar, e, ao mesmo tempo, cultivar o amor pela vida. É muito fácil descobrir a iluminação num mosteiro, mas já não é tão fácil fazê-lo numa autoestrada.” Berg combina essas reflexões com a narrativa mais ampla da vida de Buckley, mostrando como a sua sensibilidade e turbulência interiores desempenharam um papel crucial na formação de sua expressão artística.
Não menos decisiva foi a omnipresente ausência da figura do pai, Tim Buckley. A busca de Jeff da sua própria identidade — tanto como artista como enquanto pessoa — estava irremediavelmente presa ao legado dele. Na verdade, se o jovem Jeff tentava distanciar-se do estilo musical de Tim, “It’s Never Over, Jeff Buckley” mostra como a sombra da influência do pai ainda o assombrava. Tanto pelo crescente assédio editorial (“As editoras começaram a infestar os meus concertos, andavam todos a tentar farejar o novo Tim Buckley. Odiava aquilo!”) como pela forma como diversos testemunhos colocavam o problema: “Ele andava em busca das respostas de um fantasma, as respostas do pai.” Interrogava-se acerca da sua real valia (“Precisei de 27 anos para gravar ‘Grace’. irei precisar de outros 27 para o que vier a seguir?”), mas outras figuras do passado recente assombravam-no igualmente. Caso do primeiro instante em que franqueou as portas de entrada da Sony, em Nova Iorque, e “a coisa em que imediatamente reparamos é na fotografia de um belíssimo Bob Dylan suspensa na parede; depois, Miles [Davis], Thelonious Monk, Duke Ellington...”, uma espécie de guarda de honra intimidatória que o obrigava a recordar quais os padrões com que iria ser avaliado. Tarefa para a qual, segundo o compositor e maestro Karl Berger (íntimo de Ornette Coleman, Lee Konitz, Anthony Braxton, Carla Bley, Bill Laswell, John McLaughlin, Natalie Merchant...) ele não se acharia insuficientemente preparado: “Ouvia Bill Evans, Shostakovich... conhece algum músico pop que saiba sequer quem foi Shostakovich?”
No centro de tudo o que já foi escrito ou venha ainda a escrever-se acerca de Jeff Buckley, estará sempre a sua voz incomparável, um dos instrumentos mais extraordinários da música moderna.
Porém, no centro de tudo o que já foi escrito ou venha ainda a escrever-se acerca de Jeff Buckley, estará sempre a sua voz incomparável — um dos instrumentos mais extraordinários da música moderna — com uma extensão de 4 oitavas, capaz de se entregar à interpretação de baladas folk, ópera, jazz, gospel e rock com sobrenatural à vontade e que tinha ainda a particularidade de, ao contrário do que é habitual, quanto mais se embrenhava nos extremos das frequências agudas, mais reforçava a sua intensidade. À época, houve quem escrevesse que a voz de Jeff era uma prova definitiva da existência divina. Jeff, invocando a memória do pai, limitava-se a, pouco entusiasmadamente, declarar que “aquela voz” não era senão uma herança genética que, de geração em geração, era passada entre os homens da família, como expressão do seu estado emocional.
Apesar de, para David Bowie, o assunto ter ficado praticamente encerrado à primeira tentativa — “‘Grace’ é o melhor álbum alguma vez gravado” —, tanto por via da pressão editorial como pela necessidade de provar a si mesmo que o disco não fora um feliz produto dos acasos, o perfeccionismo e o comprometimento emocional de Buckley impulsionaram o processo de criação do que viria a transformar-se numa peça de referência, coesa e profundamente pessoal, do rock e da música alternativa. O segundo álbum (inacabado) de Buckley, “Sketches for My Sweetheart the Drunk”, continua a ser uma das histórias mais comoventes sobre “o que poderia ter sido” da história do rock.
Embora Buckley tenha falecido tragicamente antes da conclusão do álbum, o filme oferece um olhar sobre os fragmentos que restam e desafia-nos a conjeturar acerca da direção que Buckley buscava musicalmente, combinando estilos mais introspetivos e fraturados com a sua intensidade característica. “Tínhamos de nos esvaziar interiormente para deixar fluir aquela música muito devocional. Por vezes, sentia uma estranhíssima sensação de viajar vertiginosamente para diante no tempo, conduzido pela trajetória da voz do Jeff, como se a minha vida se derramasse toda naquele instante. Era um grupo que não tinha medo de arriscar e possuía a coragem suficiente para se aventurar por áreas inesperadas, onde, às vezes, nos descobríamos à beira do abismo”, contava o guitarrista Michael Tighe, também presente ao lado de Mary Guibert no referido encontro parisiense.
À beira do abismo — contam Aimee Mann, Joan Wasser e todos os demais que, agora, depõem — esteve Jeff ao aproximar-se perigosamente da heroína, ao quase sucumbir aos sintomas de depressão que o oprimiam, aos sonhos e alucinações que não lhe davam descanso ou aos planos irrealistas (“Vou escrever 100 canções em 5 semanas”) que se propunha. O que Tighe, de algum modo, quase consegue sintetizar: “Tenho a sensação de que, muitas vezes, através dos textos, ele nos telegrafava a sua morte que, acredito, foi mais uma questão inexorável de destino do que propriamente um acidente. A forma como morreu acabou por ser muito semelhante ao modo como viveu a vida: mergulhando na corrente.”